Com maior ou menor alcance, o Governo reestruturou a Administração central, implementou a avaliação de desempenho, alterou o vínculo da maioria de funcionários, reduziu o número de efectivos. Mas a alegada "resistência sub-reptícia" à mudança já fazia antever algum grau de conflito. Agora a avaliação é a dos funcionários: da adesão dependem votos e pode depender o êxito da reforma.
Foi difícil no Estado como seria difícil numa empresa privada. Quando Marta (nome fictício) integrou o instituto público, em 2004, não havia um verdadeiro sistema de avaliação. Em 2006, porém, é aplicado o Sistema Integrado de Avaliação do Desempenho (SIADAP). Absorvida no espírito "meritocrático", esta técnica superior levou a avaliação a sério. Mas nem todos fizeram o mesmo. "Existe uma discrepância brutal por parte dos avaliadores e não existe ninguém que controle os objectivos. Eu estabeleço metas exigentes e o avaliador do lado escreve algo como 'tem de vir ao trabalho'. Por isso há pessoas muito boas que são ultrapassadas ". Difícil foi enfrentar os avaliados: "Está a ver como nos prejudicou?"
Nesse primeiro ano chegou a haver uma reunião por "excesso" de muito bons (agora designados "relevantes"). Era preciso ajustar os resultados às quotas definidas na lei. "Sugeri que se fosse ver quem tinha dado notas altas, para se avaliar os serviços, e ver se eram serviços excelentes. Não caiu muito bem. Os avaliadores não querem ser responsabilizados." Em 2008, o Conselho Coordenador de Avaliação só validou um dos dois muito bons que Marta entendia que deviam ser dados. A nova regra oficiosa era a de uma boa nota por serviço. "O sistema de avaliação é melhor do que o que existia antes, porque não podemos viver num país em que toda a gente é excelente. Mas há uma série de injustiças que têm que ser limadas."
Certo é que, por via da limitação da avaliação a quotas e da sujeição à disponibilidade orçamental dos serviços, a subida de posição remuneratória se torna mais lenta para a maioria dos funcionários.
O Governo tem sublinhado que a avaliação abrangeu 90% dos funcionários em 2008 - contra 30% em 2004 e 2005 - sem esclarecer detalhes.
Também João Bilhim, que deu formação sobre avaliação aos dirigentes, manifesta dúvidas sobre a correcta aplicação da avaliação. "É necessário mais acompanhamento na definição de objectivos", defende ao DN. O professor catedrático foi o responsável pela elaboração do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE), a reforma em que tudo começou, e que nas contas do Governo levou à eliminação de 25% das estruturas orgânicas e cargos dirigentes. Aplaude "a maior reforma desde Mouzinho", mas sublinha que o objectivo inicial era o de uma reestruturação mais incisiva - conseguida através da extinção e não da fusão de organismos - e a de uma profunda requalificação do pessoal excedentário às funções que o Estado precisa. Os efeitos da mobilidade especial, que abrangeu 3563 funcionários, acabaram por ser "praticamente nulos, com a agravante de que não houve requalificação do pessoal", afirma. Dados oficiais mostram que menos de um décimo voltou a ser recolocado (ver gráfico).
Num quadro de forte contenção orçamental, o Governo avançou para a revisão das regras de aposentação (estabelecendo o gradual aumento da idade da reforma), reformulou as carreiras e criou novas posições remuneratórias. Mas é a passagem de meio milhão de trabalhadores do vínculo de nomeação para o contrato de trabalho em funções públicas que motiva as maiores resistências na recta final da legislatura. A Frente Comum e o Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado acusam o Governo de ter preparado o terreno para futuras reestruturações em larga escala, ideia que o Executivo nega.
O Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas tenta uma aproximação à legislação laboral privada, mas mantém intocadas matérias como o número de dias de férias ou o horário semanal de 35 horas, o mais leve de toda a Europa. O primeiro acordo colectivo das carreiras gerais, que introduz mecanismos de flexibilidade horária, foi assinado a poucas semanas do final das eleições, num acordo que volta a excluir a Frente Comum.
A avaliar pelos números oficiais, o Governo conseguiu inverter a tendência de aumento do número de efectivos no Estado. A regra "dois por um" prevê a admissão de um funcionário por cada dois que saem. A corrida às reformas - nomeadamente às antecipadas, com as respectivas penalizações - acabou por ser decisiva para a redução líquida de 51 mil efectivos até Setembro de 2008 (ver gráfico). Um processo realizado "sem as dezenas de milhares de despedimentos de funcionários públicos que alguns liberais propunham há dois anos", sublinha o Ministério das Finanças, numa nota enviada ao DN.
Os funcionários públicos têm uma "resistência sub-reptícia" à mudança, afirmava João Figueiredo, que foi secretário de Estado da Administração Pública até meados do ano passado. "O que o João Figueiredo esquece é que também ele é funcionário público", responde Alcides Teles, da Frente Comum.
Contestação dos sindicatos dispara com o Governo PS
O grau de contestação disparou com o Governo de José Sócrates. O número de greves associado à reforma da administração pública duplicou nos primeiros dois anos da legislatura do PS, quando comparado com o número registado nos três anos anteriores, altura em que governava a coligação PSD/CDS-PP. A análise é de Alan Stoleroff, investigador do ISCTE, num estudo que analisa as relações entre o Governo e os sindicatos até à primeira metade da legislatura.
De Abril de 2002 a Março de 2005 foram registadas 14 greves relacionadas com a reforma da administração pública, três delas gerais. Já de Março de 2005 a Maio de 2007, o número global chega a 38 - muitas na Educação e na Saúde - e inclui sete greves gerais.
"Este é um indicador claro de que os desafios foram mais agudos no segundo período e uma medida da determinação do Governo socialista no cumprimento do seu programa de reformas", escreve o autor.
Numa análise qualitativa, Alan Stoleroff identifica um "padrão" na negociação do Governo com os sindicatos. "Tipicamente, o Governo apresentou aos sindicatos não uma proposta dos objectivos das reformas, mas pacotes legislativos totalmente elaborados. A legislação proposta foi desenvolvida à moda tecnocrática por comissões de académicos em colaboração com os ministérios e sem contributo dos sindicatos para a concepção das reformas".
A estratégia, escreve o autor, foi a de tratar as propostas como pacotes racionais de princípios e mecanismos necessários ao País, ainda que motivassem a oposição dos sindicatos. Os projectos "saíram quase intactos, com apenas algumas alterações menores".
É por isso "possível concluir que o Governo adoptou a estratégia de impor uma reforma concebida sem a participação dos sindicatos e independente do grau de consenso", defende Alan Stoleroff. O que não iliba os sindicatos de responsabilidades, acrescenta o investigador, levantando dúvidas sobre a viabilidade de uma estratégia assente num sistema "rígido" de defesa.
O investigador do ISCTE conclui que o discurso de "diálogo social", um compromisso assumido no âmbito da Estratégia de Lisboa, foi "meramente retórico". O facto de o Governo se ter sentido legitimado pela "urgência da crise orçamental" não invalida esta conclusão, acrescenta.
As negociações salariais são referidas como exemplos de inflexibilidade na posição do Governo. Mas se os funcionários perderam poder de compra nos primeiros três anos, o último da legislatura (2009) será excepcional.
O Governo tem contestado a ideia de ausência de diálogo, salientando que os mais de 20 diplomas que concretizaram a reforma obtiveram o acordo de estruturas sindicais.
"Desmente-se mais uma vez a inverdade muitas vezes repetida em jeito de verdade de que a reforma não se fez ouvindo as pessoas e estreitando pontos de entendimento", referiu recentemente o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, na cerimónia de assinatura do primeiro acordo colectivo de carreiras.
Com uma abrangência potencial de 360 mil trabalhadores, o resultado da primeira negociação colectiva só alcançou, numa primeira fase, 160 mil. Tendo apenas sido assinado com a FESAP e o STE, excluiu os filiados nos sindicatos da Frente Comum.
Fonte DN (aqui)