Governo reconheceu tarde a debilidade financeira do país. Factura será paga pelos portugueses a partir do próximo ano, com juros
Em 2011, os portugueses vão acordar com a sensação de que acabaram de sair de uma longa viagem na montanha-russa, ou seja, atordoados, perdidos, inseguros. Uma montanha-russa é uma pista que proporciona descidas íngremes, subidas invertidas, paragens relâmpago, quedas súbitas, tudo a grande velocidade e com grande grau de incerteza. Num parque de diversões, o carrossel garante adrenalina e milhares de fãs. Na vida real, nem fãs nem adrenalina. Só medo.
E Portugal, nos últimos 12 meses, não foi mais do que isso: uma montanha-russa cheia de loopings, inversões, inclinações. E quedas. Muitos erros e poucas certezas. 2010 foi um ano para não esquecer. Não exactamente pelas melhores razões.
Do palco político, com vista à evolução do país, saiu apenas a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo - mais de 200 uniões foram realizadas nos últimos seis meses -, mesmo se o presidente da República, Cavaco Silva, promulgou o diploma a contragosto e a Direita reclamava um referendo. A verdade é que excluindo esse benefício, que não significa mais do que mais direitos para quem tinha menos, a maioria do que saiu da Assembleia da República (AR) foi muito circo e pouco pão.
A primeira metade do ano foi gasta pela Oposição a apurar se José Sócrates mentira na tentativa de compra da TVI pela PT. A segunda, gasta pelo Governo a acusar o PSD de ameaçar abolir o Estado social. E ameaçar foi o verbo de ordem, o único constante em 2010: ameaça de eleições legislativas antecipadas, ameaça de entrada do Fundo Monetário Europeu (FMI), ameaça de saída do Euro. Da ameaça à prática, só a perda. Efectiva. Mais desempregados, acima dos 700 mil, e cortes salariais, tanto por via directa como indirecta, através dos impostos. Mas a ameaça continuará em 2011.
Imiscuído cada vez mais na questão económica, o exercício político incluiu dois Pactos de Estabilidade e Crescimento (PEC), ambos violentos, mas aparentemente insuficientes. José Sócrates e Passos Coelho até dançaram o tango, mas terá sido porventura demasiado tarde.
O presidente da República lançou o aviso logo no primeiro dia de 2010: "Podemos estar a caminhar para uma situação explosiva." Cavaco Silva, que já na campanha presidencial de 2005 argumentara que o seu percurso como economista seria uma mais valia para os tempos que se aproximavam, referia-se às débeis finanças do país. Mas o país, sobretudo político, estava mais entretido com outros assuntos. Os jornais revelavam escutas a torto e a direito, sugando os danos colaterais do processo Face Oculta. José Sócrates, principal visado, acossado, dizia estarmos diante de "um jornalismo de buraco de fechadura". O primeiro-ministro era a personificação do polvo. A razão? A desconfiança de que teria sido o mentor do plano de compra da TVI pela PT com o objectivo de silenciar o "Jornal de sexta-feira". Daí, a necessidade de perceber se mentira quando negou, no Parlamento, não ter tido conhecimento do negócio.
O PSD e o BE criaram uma comissão parlamentar de inquérito para apurar a verdade. Mas após meses de trabalho e dezenas de pessoas ouvidas e dezenas de horas transmitidas em directo pelas televisões, a conclusão foi insípida. A falta de prova segurou Sócrates, mas não os administradores da PT, Rui Pedro Soares e Soares Carneiro, duas demissões milionárias. E já nunca poderia inverter o percurso Manuel Godinho, o sucateiro que jurou que, a Armando Vara, então administrador do BCP, só oferecera "robalos, pescada, chicharros e sardinhas". Godinho, pai Natal de tantos políticos e empresários, é o único que continua detido.
O país passou quase metade do ano entretido com esta novela. No fim, teve ainda direito um curioso asterisco: Agostinho Branquinho, deputado do PSD, um dos mais empenhados da comissão, perguntara em Fevereiro: "O que é a Ongoing? É um grupo de média?" O deputado terá ficado seguramente a perceber o que é a Ongoing em Outubro, quando trocou o Parlamento por um contrato naquela empresa. E o país a perceber o empenho dos deputados.
Noutro paralelo, Manuela Ferreira Leite, ex-líder do PSD, insistia na debilidade financeira do país, dando continuidade ao discurso que a fizera perder as legislativas para Sócrates. Que não haveria dinheiro para as grandes obras públicas - para o aeroporto de Lisboa e o TGV, a linha ferroviária que, nas palavras do ministro António Mendonça, faria de Lisboa "a praia de Madrid" -; que avançar com as obras seria hipotecar o futuro; que era preciso controlar a despesa. Mas ninguém a quis ouvir, sequer no próprio partido. Em Março, Pedro Passos Coelho assume a liderança do barco social-democrata, assegura que não quer abrir crises políticas, mas avisa que está preparado para governar. Ferreira Leite admitiu que "conhecia bem os custos de ter razão antes do tempo". A verdade é que, com Passos Coelho, o PSD ultrapassou pela primeira vez em muito tempo o PS nas sondagens. O partido do Governo nunca mais recuperou. E desde então, a ameaça de antecipar as legislativas pairou insistentemente sobre o país.
Enquanto lá fora a crise agudizava, a Grécia caía e o fantasma do FMI ressuscitava, com os mercados a pressionarem os PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha), as taxas de juro a abandonarem a margem de conforto e a Europa a discutir a estabilidade, senão mesmo o fim da Moeda Única, cá dentro, Sócrates desdramatizava. Em Abril, prometia "não aumentar os impostos pela simples razão de que isso teria um efeito recessivo na nossa economia"; em Maio, rejubilava com o facto de Portugal ser "campeão do crescimento económico no primeiro trimestre do ano (1,7%)." Mas poucos dias depois, estava o país católico anestesiado com a vinda do Papa a Portugal, quando o primeiro-ministro anuncia que "o mundo mudou em 15 dias" e convence Passos Coelho a dançar com ele o tango. O PEC II é assinado a 13 de Maio, com duas medidas icónicas: o aumento do IVA de 20% para 21% e o aumento de escalões de IRS em 1 ou 1,5 pontos percentuais consoante os rendimentos.
O líder do PSD pede "desculpa aos portugueses" pela dança. Teixeira dos Santos, ministro das Finanças, não pede desculpa, porque está "de consciência tranquila". Em alemão, Angela Merkel sublinha que "o Euro está em perigo". Tanto faz. Em Portugal grita-se pela Selecção no Mundial da África do Sul e entra-se no Verão. Tranquilamente, apesar de os incêndios terem feito de 2010 o terceiro pior ano da década.
O desassossego político só regressa em Agosto, na festa do PSD, com o mítico Pontal a servir de palco para Passos Coelho dar conta dos detalhes da proposta de Revisão Constitucional. Já não se tratava apenas de sugerir que o presidente da República deveria ser capaz de dissolver o Parlamento em qualquer altura, mas de fazer cair a expressão "tendencialmente gratuita" na Saúde; de acrescentar a expressão "segundo as suas capacidades" no Ensino e, no mercado de trabalho, no capítulo dos despedimentos, de trocar a expressão "justa causa" por "razão legalmente atendível".
O Governo encontra aqui novo balão de oxigénio e, desde então, passa a acusar o PSD de querer abolir o Estado social. O discurso durou, mas não vingou. Bastava fazer contas. Miguel Sousa Tavares fê-las no semanário "Expresso". "Temos 3,5 milhões de pensionistas; 2,2 milhões de estudantes subsidiados pelo Estado; 700 mil funcionários públicos; 300 mil desempregados a receberem subsídio de desemprego, mais os que recebem Rendimento Social de Inserção. São sete milhões de portugueses, dois terços da população, que vivem dependentes em grande parte do Estado." Até a ministra Gabriela Canavilhas admitiria: "O Estado social está em colapso iminente."
Assim, em Outubro, cinco meses depois do PEC II, já vários países, como Espanha, tinham há muito avançado com cortes salariais na Função Pública, quando Sócrates, entalado entre a crise e a necessidade de ver aprovado o Orçamento do Estado (OE) para 2011, reconhece que o problema das contas públicas não está resolvido e anuncia novo e violentíssimo pacote de austeridade, o PEC III: salários e benefícios fiscais cortados, pensões congeladas, IVA aumenta. O objectivo mantém-se: atingir um défice de 7,3% em 2010, 4,6% em 2011, 3% em 2012.
Viabilização do OE
Por esta altura, no léxico comum dos portugueses já estavam perfeitamente introduzidos termos até então improváveis: mercados; agências de rating (juros chegaram aos 7,3%); dívida soberana na República a ultrapassar os 100%, regresso do FMI, expulsão do Euro. Acresce o desemprego, a afectar mais de meio milhão de portugueses (11%) e o aumento do crédito malparado, que nas famílias representa 2,98% (4.217 milhões) do valor emprestado; e nas empresas 5,7 vezes mais (subiu 364 milhões).
Foi neste cenário, altamente adverso, que foi discutida a viabilização do OE para o próximo ano. Nova novela. O silêncio inicial do PSD fazia adivinhar um chumbo. Sócrates ameaçava demitir-se caso tivesse de governar por duodécimos. É então criada uma equipa com Teixeira dos Santos e Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças de Cavaco, a servirem de treinadores de jogo político. E é em casa deste que o protocolo que garante a abstenção do PSD na votação do OE acaba assinado, mas sem direito a fotografia oficial. No entanto, e ao contrário do que se julgava, o entendimento não teve, num primeiro momento, impacto nos juros, que se mantiveram acima dos 7% . E não só não impediu como impeliu a greve geral de 24 de Novembro. As duas plataformas sindicais, UGT e CGTP, surgiram unidas ao fim de duas décadas. A contestação foi silenciosa e à chuva, mas de agravada importante. O cenário é o pior possível: Portugal está no purgatório e não será em 2011 que saberá se alcançará o céu. Ou o Inferno. Para piorar, esta semana, a agência financeira Fitch, preocupada com o financiamento dos bancos e do Estado, agravou o rating da dívida pública. Em 2011, os portugueses vão embarcar num comboio-fantasma.
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