Para Valadares Tavares, o corte de 15 por cento nos cargos dirigentes é um "objectivo modesto". E poder-se--ia ir até aos 25 por cento sem afectar os cidadãos
Luís Valadares Tavares diz que o Governo pode ser muito mais ambicioso nos cortes, poupando os funcionários públicos. Defende que o Memorando da troika "é muito rico" e está "bem feito", por apontar para as medidas essenciais, mas peca por ser pouco ambicioso. O ex-presidente do Instituto Nacional da Administração (INA) diz que o PRACE falhou rotundamente, por não ter uma visão nem ter elencado objectivos. E afirma que, como está praticamente tudo por fazer, não será difícil conseguir poupanças relevantes com cortes no desperdício e na ineficiência, integrando os serviços, o que não significa cortar nos funcionários públicos, "que podem ser motivados e readaptados".
Luís Valadares Tavares defende ainda que devia ser lançado um programa idêntico ao das Novas Oportunidades, mas específico para os funcionários públicos com menores qualificações. Isto porque 30 por cento dos trabalhadores do Estado têm o ensino básico como escolaridade, quando esse número deveria situar-se entre os cinco e os sete por cento.
Que avaliação faz dos compromissos que Portugal assumiu no memorando de entendimento no que se refere à reestruturação do Estado?
O memorando é muito rico e está muito bem feito, porque levanta um conjunto de questões muito importantes para o país, e para o Governo desenvolver uma visão moderna da administração pública. Desde meados dos anos 90 que houve a grande explosão das novas tecnologias, que permitiriam redesenhar e repensar muito a própria morfologia da administração pública. Foi o que se fez em todo o mundo, mas não se fez nada em Portugal. Aqui houve desenvolvimentos muito positivos na utilização de novas tecnologias, e toda a sociedade aderiu. Mas pergunto: quais foram as unidades da administração pública da via tradicional que foi possível extinguir, fundir, integrar, reduzir, pelo facto de surgirem esses novos instrumentos? Não conheço um único caso... Porquê? Porque falta uma visão.
E o PRACE não tinha essa visão?
Foi uma iniciativa interessante, mas eu diria que não corresponde a uma visão. Em primeiro lugar, porque não tem objectivos. Qual é a percentagem de redução da despesa pública com a actividade da administração central que está prevista no PRACE?
O Governo defendeu não apresentar esse número para não condicionar as reformas a uma questão de números, à poupança...
Isso foi uma desculpa para não se comprometer com nada. Mas tem razão, não se deve fixar apenas por ele. Esse objectivo é importante, mas há muitos mais. Podia haver metas para maior celeridade no licenciamento, a maior satisfação dos cidadãos, ou, por exemplo, aumentar a percentagem das qualificações na administração pública, que neste momento é muito baixa.
A crítica que se tem feito ao PRACE é que ele não foi bem aplicado.
A minha crítica é que, em 90 por cento, existe um défice profundo de concepção, porque não tem uma visão, não tem objectivos. Só sei avaliar o sucesso de uma iniciativa comparando-a com os objectivos. A modernização da administração pública vai ser inevitável. Mas tem de haver uma visão para isso, e tem de haver objectivos.
Por onde se começa?
Primeiro, por definir uma política, com objectivos, uma visão da administração que passe por evitar o desperdício, reduzir despesa. O outro objectivo tem de ser melhorar a qualidade na rapidez do atendimento, e a proximidade em relação ao cidadão. Depois destes objectivos de política, temos de ter objectivos instrumentais, e a qualificação da administração parece-me um aspecto muito importante. Nós temos 30 por cento dos funcionários públicos com o ensino básico, e o normal seria ter entre cinco a sete por cento. Não percebo por que é que não se lança um programa do tipo Novas Oportunidades, específico para os funcionários públicos com menores qualificações, que aceitem readaptar-se. Nos que por alguma razão não cumpram estas motivações, avançava-se com rescisões amigáveis.
Neste ambiente de grande contenção de custos, é possível falar desse tipo de medidas? Rescisões amigáveis têm um custo imediato para o Estado, a aposta na formação também é importante, mas há entraves financeiros...
Todas estas intervenções têm obviamente custos, mas também trazem benefícios. Devíamos pagar esses preços de transição, e poupar noutras fatias. Por exemplo, outro problema muito grave na nossa administração é a não racionalização dos meios técnicos. Estive num centro de saúde na zona de Lisboa, nuns edifícios com vários pisos, onde se fazem 20 consultas de clínica geral por semana e tem vários funcionários administrativos. Esta afectação de meios, de espaço, com custos de segurança, iluminação, etc., de um prédio (não sei se é propriedade do Estado, se é arrendado), não é defensável.
Em contrapartida, há serviços onde há menos gente. A solução é a mobilidade, como avançou o Ministério da Agricultura?
Julgo que não funcionou, e que esses funcionários foram as vítimas. Desde os anos 90 que se cometem os mesmos erros, e um deles foi a convicção que se resolvia esse problema com um quadro de excedentes. Ou seja, pensava-se que quando acreditamos que há pessoas a mais em determinado serviço, as devemos colocar numa espécie de limbo, onde perdem direitos. O Memorando da troika fala de mobilidade, mas espero que seja da que obriga a que se perceba capacidades, competências, disponibilidade, motivações de cada trabalhador. Se verificarmos que está adaptado ao sítio em que está, deve ser bem tratado, deve ter prémios de desempenho - que infelizmente acabaram, mas devem ser repostos. Quando se verifique que as pessoas não estão motivadas para determinado serviço, deve haver rescisões por mútuo acordo. E, em outros casos, deve dar-se formação, e adaptar o perfil do funcionário a novos desafios, mas sem nunca estar com aquela figura traumatizante, e que não funciona, que é chamá-lo "excedentes". O conceito de administração moderna é tratar o problema de cada funcionário e de cada cidadão de forma personalizada.
No Memorando, diz-se que é preciso cortar 15 por cento nos cargos dirigentes, e esse assunto já passou pelo Conselho de Ministros. É um bom objectivo?
É um objectivo modesto. Poderíamos perfeitamente ter ido para os 20 ou 25 por cento, e não traríamos sacrifícios para os cidadãos. Até melhorávamos o serviço prestado. É preciso ir muito mais longe a racionalizar as despesas, a eliminar desperdícios. Até porque o Governo já nos disse que há um novo problema financeiro para resolver. A redução de 15 por cento nos cargos dirigentes trará uma economia estimada de 500 milhões de euros, o que me parece uma boa estimativa. No pós-memorando, surgiu um problema adicional de dois mil milhões de euros. O Governo foi muito expedito a arranjar mil milhões através de receita adicional, mas falta resolver o problema dos outros mil milhões. A minha proposta é que estes mil milhões de euros adicionais que, segundo o Governo, têm de ser obtidos, o sejam através da redução de desperdícios.
É possível uma redução de desperdícios sem uma redução significativa do número de funcionários públicos? A troika prevê uma redução de um por cento ao ano. É preciso mais?
Não sou a favor, neste momento, de reduções numéricas para além daquelas que estão no memorando. Os funcionários não têm culpa nenhuma. A redução do número de organismos gera muito mais poupanças. A boa notícia é que se alguém quiser pegar nesse assunto pode ter poupanças muito elevadas. A prova de fogo para este Governo é demonstrar que é capaz de ter uma visão para a administração pública e depois criar uma dinâmica de redução de desperdício e ineficiência, com resultados.
Na semana passada, o Governo comprometeu-se a reduzir drasticamente o número de organismos e a reduzir a despesa primária em dez por cento. Está no bom caminho?
Parece vir no bom sentido, mas já tem havido muitas surpresas neste domínio, pelo que convém aguardar. Importa dar a maior seriedade à preparação do próximo Orçamento do Estado, para 2012, pelo que é essencial estabelecer cenários credíveis, com base nos quais se estabelecerão as previsões das receitas e os limites das despesas públicas. A experiência mostra que, no passado, tem sido muito difícil controlar estas despesas: por exemplo, em 2010, o ano de todos os PEC, a despesa com a aquisição de bens na administração pública central aumentou 6,7 por cento!
Convém recordar que, no próximo ano, não é possível contar com a redução dos 10 por cento dos salários da função pública ou das pensões de aposentação, pelo que esta poupança de 10 por cento mencionada pelo Governo terá de ser obtida através de uma poupança próxima de 18 por cento através da redução do número de dirigentes, das despesas com contratações (bens, serviços e obras) e das contribuições sociais (subsídios, apoios, etc.). Ora, isso só será exequível sem impor reduções insuportáveis nestas últimas se houver grande contracção nas duas primeiras componentes, o que exige rápida redução da dimensão da administração pública em 2011 e em 2012.
Os prazos acordados com a troika não são muito apertados?
É fundamental que sejam estes prazos. Somos muito bons a mudar, mas detestamos mudar. Só vamos fazê-lo no final dos prazos, por isso os prazos são óptimos. E o Memorando é um bom guião.
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