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A formiga no carreiro

A avaliação

O único verdadeiro erro é aquele com que nada aprendemos. A prestação de contas e a avaliação do desempenho são parte integrante de sistemas de organização social complexos que exigem que as parcelas que os compõem disponham de autonomia de decisão, dentro de limites definidos, e prestem contas do uso que dela fazem.

Por todo o mundo e nas actividades mais variadas, estas têm vindo a substituir os sistemas de regulamentação burocrática, em que uma entidade central definia um conjunto de regras e regulamentos, e em que o bom desempenho correspondia ao simples cumprimento desse código. O uso desse método organizativo supunha uma considerável uniformidade e estabilidade do domínio a que se aplicava. De outro modo, a regulamentação tornar-se-ia tão complexa que ficaria, à partida, condenada à impossibilidade de garantir o seu cumprimento efectivo, dado que tal exigiria meios, não só irrealisticamente pesados, mas que exigiriam, eles próprios, uma regulamentação igualmente complexa e, por consequência, ineficaz. Além disso, um tal sistema estaria condenado a uma permanente desactualização, dado ser obrigado a entrar em detalhes que, por natureza, não possuem a estabilidade dos princípios gerais.

A transformação de um sistema regulador centralizado, assente na simples dicotomia formal “cumprimento/incumprimento”, num sistema descentralizado, baseado na prestação de contas e na graduação do desempenho é, em si mesma, um processo extremamente complexo. Pode, na verdade, provocar um verdadeiro terramoto se não assentar numa base de entendimento e coesão social que permita levá-la a cabo gradualmente, por um método necessariamente experimental, que pressupõe a cooperação de todos com vista a atingir uma finalidade comum. Portugal está precisamente confrontado com uma transformação desta natureza, tornada especialmente difícil por ter sido adiada até aos limites do possível por uma classe política relutante em afrontar as mudanças de fundo, mas bem treinada em todos os truques da esgrima e do oportunismo.

A educação constitui um terreno de eleição para a aplicação destes, ao mesmo tempo que é aquele onde a transformação é mais essencial e os mecanismos em vigor estão mais desligados do interesse da sociedade. Durante anos, foi possível ocultar os problemas criando um sistema caro e ineficiente, que eliminou a avaliação, multiplicou os cursos e criou um sistema que, em nome da “democratização”, estabeleceu um fosso crescente entre os alunos provenientes de meios sociais e culturais diversos. Num artigo de 2005, Nuno Crato sublinhava: Por um lado, a escola continua a excluir, por insucesso grave, largas percentagens de alunos. Por outro, depois de décadas a clamar contra as rotinas e por um ensino raciocinado e crítico, a pedagogia dominante produziu alunos que não conseguem ultrapassar as rotinas e que são mais deficientes precisamente no raciocínio.
 
O aumento das despesas públicas e a criação de emprego pouco qualificado permitiram, durante algum tempo, mascarar os resultados reais das opções feitas. O preconceito que dominava as próprias famílias, identificando diplomas com competências e empregabilidade, ajudou a consegui-lo. Quando, porém, a população escolar se reduz, as despesas públicas têm de ser controladas e o trabalhadores são postos em competição com os detentores de melhores qualificações e salários mais baixos, as fragilidades do sector educativo tornam-se evidentes e, com elas, a exigência de mudança.

Esta é uma evolução comum a todos os países. Eric Hanushek, um reputado especialista americano, escrevia em 2001: A avaliação é, desde há décadas, um conceito chave na educação – na verdade, quem pode opor-se-lhe? No entanto, não se tornou realidade porque constitui uma ameaça para muitos e porque, mesmo quando desejada, é difícil de pôr em prática. De facto, embora pareça natural medir resultados e responsabilizar por eles as escolas, a realidade é muito mais complicada. Como o autor igualmente sublinha nesse texto, definir e fazer funcionar sistemas de prestação de contas é uma tarefa difícil em todas as actividades, mesmo naquelas onde a sua existência é dada por adquirida e indispensável desde há muito.

Em 2001, Hanushek dava como exemplo os problemas de governância das empresas, tipificados pelo caso Enron; hoje em dia, podemos observá-los de novo no domínio do sistema financeiro. Em todos os casos, ao contrário do que tantas vezes ouvimos repetir, não podemos aspirar a um sistema perfeito, resultante de um qualquer estudo omnisciente ou de qualquer poder iluminado que, transformado em lei, resolva os problemas uma vez por todas. A questão fundamental está em a sociedade – desde os políticos às famílias, passando pelas corporações – reconhecer os benefícios que pode tirar da mudança de atitude e, no ponto extremo a que chegámos, perceber os enormes prejuízos comuns que advêm de querer manter um statu quo insustentável.

No domínio da educação, a mudança envolve necessariamente os professores. Os mais diversos estudos internacionais mostram que o enfoque na selecção e na qualidade dos professores constitui o factor mais significativo de diferenciação entre os sistemas que apresentam os melhores resultados em matéria de capacitação dos alunos para o ambiente cultural a económico moderno. Entre os países que mais rapidamente o reconheceram contam-se alguns onde o choque da imigração foi mais forte e obrigou, conjuntamente com a abertura da economia, a uma mutação mais radical. Não consta que os professores se tenham considerado atacados pela mudança de métodos. Apenas em França vimos isso acontecer e os resultados estão à vista, tanto em matéria de emprego como de coesão social. É entre esses modelos que temos de escolher e só podemos lamentar que uma classe que precisa de ser respeitada opte pelo insulto como instrumento de “defesa”.

Fonte Jornal de Negócios, edição de 5 de Março de 2008. Ligação para a notícia (aqui)

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